Data: 30/03/2023
Veículo: Valor Econômico
Segundo os debatedores, esses ambientes não são neutros em relação aos conteúdos postados e podem atuar contra desinformação e ataques às instituições
No segundo dia de debate sobre o Marco Civil da Internet (2014), promovido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), especialistas aprofundaram as discussões sobre a necessidade de maior regulação das plataformas digitais para combater a desinformação e ameaças à democracia. Segundo os debatedores, esses ambientes não são neutros em relação aos conteúdos postados e podem atuar de forma proativa contra fake news e ataques às instituições.
A abertura da audiência pública e a condução das apresentações foram feitas pelo ministro Dias Toffoli e o encerramento contou com breve fala do ministro Luiz Fux.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), Diogo Rais alertou para o volume crescente de informações postadas nas redes sociais, o que gera dificuldade de monitoramento e regulação.
Ele citou pesquisa que demonstra que 500 horas de vídeos são postadas no YouTube a cada minuto. Isso, por si só, inviabiliza qualquer possibilidade de revisão ou filtro de informação por meio de intervenção humana.
O debate proposto pela Corte envolve aperfeiçoar mecanismos de responsabilização das redes sociais e usuários pelo uso indevido das ferramentas digitais. No centro da discussão, está a aplicação do Artigo 19 do marco legal, segundo o qual as plataformas só podem ser punidas por conteúdo produzido pelo usuário se deixarem de respeitar determinação judicial para remoção.
Na audiência, João Quinelato, representante do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), afirmou que “há um flagrante descompasso entre a velocidade judicial [na análise de processos] e a necessidade de tutela adequada [a profetação] da pessoa humana”. Para o advogado, existem razões que “levam a crer que o artigo 19 está na contramão da constitucionalizada responsabilidade civil no Brasil”.
Ferramentas digitais não são neutras, argumentam especialistas
Diretor executivo da InternetLab, Francisco Brito Cruz disse que o artigo 19 pode ter sido estabelecido para evitar que a liberdade de expressão na internet seja cerceada, e também parte da ideia de que as plataformas são “neutras”. Ele lembrou, porém, que é preciso reconhecer que as ferramentas digitais “carregam escolhas e valores” – “ou seja, não são neutras”, disse.
No mesmo sentido, a representante do Instituto Norberto Bobbio, Patrícia Peck Pinheiro, reforçou que as “plataformas não são neutras”, mas sim “a rede é que deve ser neutra”. Ela afirmou que é muito comum os provedores de conteúdo monetizarem conteúdos — ou seja, obterem mais lucro “em cima do maior tempo do dano” causado por postagens ofensivas, até partindo da lógica de “quanto pior melhor”.
Diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Fabro Steibel alertou para o risco de o Brasil querer “importar soluções estrangeiras sem entender as particularidades locais”, na tentativa de buscar solução para o impasse.
Representante da Associação Nacional dos Editores de Revista (Aner), o advogado Marcelo Bechara disse que não há interesse em trazer as leis do direito digital de outros países, mas apenas “importar o debate”.
O Congresso Nacional debate há três anos a aprovação de um projeto de lei de combate às fake news. A proposta legislativa é relatada pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP).
Impacto das fake news nas eleições, com “saldo final negativo”
Durante a audiência, o advogado do PT Miguel Filipi Pimentel destacou o impacto das avalanche de fake news sobre o processo eleitoral brasileiro. Ele afirmou que, em 2018, os partidos tinham equipes que faziam levantamento dos links “potencialmente mentirosos” e encaminhavam aos advogados para o enfrentamento jurídico. Segundo ele, apesar de a campanha “retirar mais de um bilhão de visualizações do ar”, a luta contra as fake news teve “saldo final negativo”.
O advogado afirmou ainda que, já nas eleições de 2022, “a sociedade se preparou melhor” para lidar coma situação. Ele mencionou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou resoluções “mais atentas” às dificuldades de combate às fake news.
Pimentel citou também que a imprensa reforçou as equipes de checagem de informação, os partidos aumentaram o contingente de monitoramento das redes e de resposta judicial e as plataformas digitais aperfeiçoaram os sistemas e permaneceram em “constante diálogo” com a Justiça Eleitoral.
“Mesmo assim, também percebemos que tudo isso não foi suficiente para interromper ou para evitar a disseminação de notícias falsas”, lamentou Pimentel.
Plataformas digitais podem atuar de forma “proativa”
Representante da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), Aislan Basílio defendeu que as plataformas digitais podem atuar de forma “proativa” para proteger os usuários. Segundo ele, a remoção de conteúdo deve ocorrer em “casos visivelmente abusivos”.
“Entendemos que o conteúdo que tenha caráter infringente objetivo deve ser removido pelas plataformas, por meio de seus algoritmos. Já aquele que tenha caráter subjetivo e discutível, o Poder Judiciário poderá resolver”, disse Basílio.
Ele destacou que existe uma assimetria entre ambientes de negócio das empresas de mídias sociais e redes de rádio e TV, especialmente no segmento publicitário.
Bechara, representante da Aner, explicou que boa parte das regras para limitar o uso ofensivo ou abusivo das plataformas sociais, inclusive do Marco Civil, nasceu do objetivo de proteger a população de danos individuais . Ele, porém, ressaltou que, hoje em dia, o problema tem ganhado a dimensão do “dano coletivo”, com a democracia e as instituições públicas sendo atacadas.